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Brasil deveria rever o modelo estrutural do setor de energia, diz presidente da Aneel

Entre as tendências para o setor estão novos modelos em energia solar distribuída e eficiência energética com base em inteligência artificial e internet das coisas - Foto: Getty Images

Em evento na terça-feira (01), organizado pela BloombergNEF, Sandoval Feitosa comenta sobre a necessidade de rever subsídios hoje direcionados a geração distribuída


Por Naiara Bertão

Com a evolução rápida do mercado de geração distribuída de energia (GD) e descasamento da demanda com a oferta de energia elétrica, o sistema elétrico precisa ser revisto, em especial as políticas de subsídios. É o que afirma o diretor-presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval Feitosa, que participou de evento organizado pela Bloomberg NEF nesta terça-feira (01).

"O sistema elétrico tem que ser completamente redesenhado", diz. Afirma ainda que, apesar de o sistema elétrico brasileiro ter uma matriz limpa e com aumento significativo de fontes solar e eólica, o fato de elas serem intermitentes e as baterias ainda não serem uma realidade consolidada, o país está contratando mais térmicas a gás.

"Estamos adicionando mais renováveis (eólica e solar especialmente) na matriz energética, mas não estamos fazendo a transição energética porque também estamos contratando mais térmicas a gás no próximo leilão", comenta.

As térmicas são usadas para elevar a segurança energética do sistema, por ser uma solução mais "confiável, flexível e rápida" para ser acionada em caso de necessidade.

Subsídios


Segundo o presidente da Aneel, os subsídios aos investimentos em geração renovável é um tópico que deveria ser revisto, por estarem distorcidos e influenciarem a dinâmica de demanda e de preço da energia elétrica. Ele explica que não faz sentido o país direcionar volumes consideráveis de subsídios para geração eólica e solar, inclusive, para geração distribuída e, ao mesmo tempo, gastar com térmicas para trazer segurança ao sistema. "A lógica não bate", diz. "O Brasil precisa decidir o que quer", acrescenta.

Ao Prática ESG, Feitosa explica que os incentivos até hoje foram direcionados a incentivos tecnológicos, que eram necessários no início do desenvolvimento dessas tecnologias para a escala do segmento de renováveis. Porém, agora, é preciso rever o modelo estrutural, já que essas tecnologias já baratearam. Cita como exemplo a queda de 80% do preço dos painéis solares, que tornou, inclusive, a modalidade mais acessível a pequenos consumidores de energia.

"O Brasil hoje tem toda a cadeia [solar e eólica]. Então, esses incentivos, hoje, não fazem mais sentido do seu ponto de vista lógico", comenta. "É preciso rever o modelo estrutural."

Questionado sobre para onde os subsídios deveriam ser direcionados, especialmente visando a transição energética, ele explica que é necessário desenvolver "outras fronteiras tecnológicas", sem citar exemplos. "Essa é uma ideia, mas que está dentro do âmbito da política pública. Agora, quando a gente fala de melhoria no setor, há um mundo de coisas a ser discutida", afirma.

Uma das mudanças que estão sendo discutidas pela Aneel, segundo Feitosa, é a criação de um sandbox tarifário para lidar com a participação crescente da geração distribuída. Segundo ele, o sinal de preço da GD não repercute o valor da energia no momento em que ela é gerada.

"No meio da tarde, quando a geração de energia está forte, ela tem um valor muito alto. À noite, quando não tem mais geração distribuída, é utilizada a rede elétrica. Então, nós já estamos discutindo na Aneel o sandbox tarifário para rever a tarifação de baixa tensão", diz.

Segundo o presidente da autarquia, a expectativa é trabalhar nisso nos próximos dois anos. "No horizonte de dois anos nós queremos ter todos os modelos de precificação necessários para poder ser adotados", diz. Para isso, contudo, ele explica que será necessária uma política pública que dê à Aneel a permissão para fazer essa mudança na tarifa para baixa tensão.

Feitosa também comenta que o uso de baterias, especialmente nos horários em que a geração eólica e solar é mais intensa, pode ajudar a equacionar a questão tarifária. "Mas se não houver diferenças de preços, o uso da bateria é limitado. É importante precificar esse valor da energia ao longo do dia para que a bateria e outros modelos de negócios parem de pé", pontua.

O governo fará seu primeiro leilão de bateria este ano, ainda sem data definida, mas provavelmente no segundo semestre. Segundo Feitosa, não há ainda definição sobre qual capacidade que será contrata e, entre as variáveis que ainda precisam ser discutidas, estão especificações técnicas e outros parâmetros, que são, bem diferentes de outros leilões e, por isso, a agência precisa de mais um tempo para detalhar e discutir com o Ministério de Minas e Energia.

O mercado estima que a necessidade gira em torno de 10 a 15 gigawatts. Mas o diretor não confirma o número. "A oferta, quem decide é o Ministério", aponta. "O que eu posso dizer é que existem 74 gigawatts de projetos cadastrados, 67% são usinas térmicas a gás, 30% usinas a óleo e combustível e 3% de hidrelétricos."

"Com a continuidade do crescimento das usinas, da geração renovável, que sinalizam no PDE [Plano Decenal de Expansão de Energia] crescimento de 135% para a energia solar e mais de 67% para eólica, isso vai continuar exigindo mais potência a ser contratada de térmicas", reitera.

Thiago Prado, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), comenta que as baterias seriam alternativas inclusive para "linhas virtuais" de conexão com a distribuição em lugares mais remotos e de difícil implementação de linhas de transmissão. "Ao invés de expandir as linhas para regiões com dificuldade, podemos usar as baterias.

Mas, enquanto o leilão de baterias não sai, Prado comenta que há frentes que podem ser trabalhadas. Uma delas é a ampliação do uso de biocombustíveis como fontes para as térmicas. "Os parques termelétricos existentes, geralmente movidos a óleo e gás, podem ser adaptados a biocombustíveis", explica. E lembra que o leilão de capacidade previsto para junho está aberto, pela primeira vez, para projetos de biocombustíveis, o que é uma boa notícia.

"Isso está em linha com a busca por fazer uma transição energética com as vocações de cada país", diz. "O que o Brasil tem defendido nos foros internacionais é que não existe uma solução única para todos; mas que cada país tem que olhar os seus recursos e tentar desenhá-lo", comenta Prado. Cita que, além dos biocombustíveis, outra fronteira é o desenvolvimento de turbinas para termoeletricidade que façam 'blends' (misturas) de gás natural com hidrogênio.

"É um teste mesmo. E é uma oportunidade também de utilizar plantas existentes. Ao invés de construir uma nova, você pode utilizar uma planta existente que já tenha uma linha de transmissão desconectada da rede, uma subestação, toda a infraestrutura de obra civil podendo ser modernizada e utilizando um combustível que esteja alinhado com as políticas nacionais", afirmou o presidente da EPE.

Curtailment


Ainda que a capacidade instalada dos parques eólicos e solares tenha crescido exponencialmente nos últimos anos, há momentos em que essa geração precisa ser limitada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), mesmo havendo disponibilidade no parque de geração. Essa redução ou interrupção forçada da geração de energia renovável é chamada de curtailment.

O tema foi bastante citado no evento da BloombergNEF como um desafio para o setor. "É uma grande discussão no setor. Todo mundo está preocupado. Atrasos em linhas de transmissão, hidrologia mais recessiva do que o esperado, menor demanda por energia no fim de semana e a concorrência com a geração distribuída. O ONS corta para manter o sistema operando de forma adequada, mas o risco pela falta de demanda é do mercado gerador", explica Fabio Zabfelice, CEO da AurenCotação de Auren, em outro painel do evento.


CEOs, especialistas e representantes de entidades participaram do evento sobre transição energética organizado pela BloombergNEF nesta semana - Foto: Divulgação/ BloombergNEF

Entre suas causas do curtailment estão dificuldades técnicas e/ou operacionais no transporte da energia gerada, limite da capacidade de transporte de energia nas linhas de transmissão e falta de demanda suficiente para absorver toda a geração disponível. Nos últimos anos, a frequência de interrupções tem crescido, especialmente por um descasamento entre o tempo em que um projeto de geração e um de transmissão e distribuição - a rede, muitas vezes, não fica pronta a tempo.

A preocupação do setor está assentada nos prejuízos financeiros que podem ter. Isso porque os geradores só são ressarcidos em casos de falha nos equipamentos de transmissão ou quando atingida uma franquia mínima de horas de curtailment ao ano, também determinada pelo ONS.

Neste contexto, os geradores, tanto individualmente quanto por meio de suas associações, têm buscado soluções, seja por meio de compensações, seja por uma definição mais precisa dos critérios utilizados pelo ONS para determinar quais agentes terão sua geração limitada.

"O gerador não tem gestão plena, portanto, o risco deveria ser compartilhado", defende Zabfelice, da Auren. "Quem tem que pagar a conta, gerador ou distribuidor? Onde o risco tem que ser alocado e onde custa menos? Temos que ter essas discussões", completa.

Bruno Riga, responsável Brasil da Enel Green Power e Thermal Generation, concorda que é necessário um olhar mais amplo para resolver a questão do curtailment. "Baterias é apenas parte da solução. É preciso fazer uma mudança mais ampla no setor. Há um problema de infraestrutura de transmissão e de demanda que afeta o gerador", diz.

Prado, da EPE, lembra que o brasil já investiu mais de R$ 60 bilhões para instalar 15 mil quilômetros de linha de transmissão. E argumenta que a velocidade da instalação do sistema de transmissão é rápida em comparação a outros lugares, em torno de 60 meses. E lembra que já há projetos em andamento para 2028-2030 que podem ajudar a minimizar o gargalo.

Parte do problema está na geração distribuída. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), os sistemas de micro e minigeração distribuída de energia elétrica (GD) fecharam 2024 com 8.845,5 megawatts (MW) em potência instalada.

"O país bancou os subsídios e incentivou a sobreoferta de energia e agora convida a todos para pagar pelos incentivos", comenta o diretor-presidente da Aneel, Feitosa.

A GD é quando o consumidor brasileiro gera sua própria energia elétrica, geralmente a partir de fontes renováveis, e lança o excedente na rede de distribuição de energia para usar nos momentos em que não está gerando. No ano passado, foram instalados 782.897 sistemas de MMGD no Brasil, sendo 99% com painéis solares fotovoltaicos. A previsão é que o segmento alcance 52 GW de capacidade instalada em 2028.

"Quando os geradores começaram a investir em parques solar e eólico não era possível prever que a GD cresceria nesta proporção. Agora é preciso encontrar uma solução para todos os atores, porque isso está parando os projetos novos de energia renovável", pontua Riga, da Enel Green Power.

Sobre a geração distribuída, que tem ganhado destaque nos últimos anos, Thiago Prado, presidente da EPE, explicou ao Prática ESG que a origem dos incentivos à GD está em um viés técnico positivo para a rede elétrica. "Se você produz energia onde está consumindo, você consegue usar melhor os ativos que estão disponíveis", afirmou. Contudo, ele apontou que o grande desafio está na "calibragem econômica". "Em algum momento, essa calibragem tornou-se muito benéfica. E aí, essa curva ficou muito acelerada."

Hoje, a discussão não é mais sobre os benefícios técnicos da geração distribuída, mas sim sobre seu crescimento acelerado, que tem trazido desafios para a operação e o planejamento da rede. "A calibragem econômica faz com que ela cresça de forma muito pujante. Isso, sim, tem a ver com o impacto da rede. E traz dificuldades também, não só para quem opera, mas para quem planeja", explicou Prado.

O aumento da geração distribuída tem gerado dificuldades na previsão de demanda de energia, especialmente porque as pessoas com sistemas de geração própria acabam consumindo mais energia. "Na medida que as pessoas têm uma geração própria, elas também sobem o consumo. E aí, a gente também tem uma dificuldade de conseguir enxergar a evolução desse consumo dentro das casas", explicou.

Diante desse cenário, a EPE tem investido em novas ferramentas de pesquisa, em parceria com as distribuidoras, para aprimorar a coleta de dados sobre o consumo de energia. "Na EPE, a gente tem investido, junto com as distribuidoras, em aprimorar os mecanismos de pesquisa de posse e hábito de consumo para que a gente consiga ter informação qualificada para fazer essas projeções, essas estatísticas com relação à demanda de energia", concluiu o presidente.

O setor de energia do Brasil segue em constante evolução, com desafios complexos a serem enfrentados, mas também com oportunidades significativas para um futuro mais sustentável e eficiente.

Valor
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