Cortes de energia eólica e solar preocupam gestores
Samer Serhan, sócio da área de crédito privado da JiveMauá: Mercado foi inundado por projetos de geração distribuída fotovoltaica e agora terá de rever planos - Rogerio Vieira/Valor
Usinas devem ter perdas de R$ 1,7 bi até outubro com medida do ONS
Por Liane Thedim - Do Rio
Uma nova palavra entrou no dia a dia dos gestores de crédito privado e acendeu a luz amarela nos últimos meses: "curtailment", termo usado para denominar os cortes de geração de energia por falta de demanda, decididos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). No ano até outubro, o total de perdas estimado pelas associações de usinas solares e eólicas, que concentram as suspensões, é de R$ 1,7 bilhão. Só no terceiro trimestre, 14% de toda a energia renovável gerada no Brasil foram para o lixo, segundo relatório do ItaúCotação de Itaú BBA. "Esse é um tema bem recente e sensível que estamos acompanhando de perto", diz Gabriel Esteca, sócio da Bocaina Capital, especializada em infraestrutura.
Em meio à euforia entre investidores principalmente por debêntures de infraestrutura e fundos concentrados nesses papéis, que são isentos de Imposto de Renda (IR), os riscos envolvidos nessas perdas já estão nas contas dos gestores. BTGCotação de BTG Pactual Asset, Rio Bravo , Sparta, Kinea e JiveMauá vêm evitando papéis com maior risco de curtailment. "Estamos monitorando e evitando exposição maior", diz Luís Bolfoni, gestor de portfólio de crédito para infraestrutura da BTG Pactual Asset. No fundo BTG Pactual Dívida Infra, o BDIF11, listado na B3Cotação de B3, por exemplo, a parcela em energia renovável já diminuiu de 10% para 3%.
"Fomos inundados por projetos de geração distribuída fotovoltaica", comenta Samer Serhan, sócio e executivo de investimentos da área de crédito privado e infraestrutura da JiveMauá. Somente de janeiro a outubro de 2024, emissões de títulos de projetos de usinas solares e eólicas somam R$ 3,7 bilhões, enquanto no ano passado o volume foi de R$ 750 milhões, conforme levantamento da Sparta. De acordo com dez gestores ouvidos pelo Valor, ainda não há registro de títulos com inadimplência ou maior prêmio de risco. "As principais empresas com exposição a esse tema são as gigantes, e o mercado de crédito está muito demandado ainda, ou seja, não tem refletido o problema em spreads mais altos. Mas não descarto essa hipótese, dependendo de quanto o problema se estenda", afirma Esteca, da Bocaina. "O mercado de crédito, em alguns casos, demora para responder a eventos externos."
Conforme o relatório do Itaú BBA - o "Curtailment Digest", lançado em outubro, o primeiro de uma série sobre o tema -, Echoenergia (EquatorialCotação de Equatorial), AESCotação de AES Brasil, CopelCotação de Copel, CPFLCotação de CPFL e EngieCotação de Engie foram as mais afetadas em setembro. Aymar Almeida, sócio e gestor de fundos de infraestrutura da Kinea, afirma que, por serem grandes companhias, as perdas com os projetos de energia renovável são absorvidas, num nível que não atrapalha os compromissos. O risco da debênture acaba sendo corporativo. "Por enquanto, os curtailments não têm gerado preocupações materiais para nossos fundos", garante.
No entanto, como são projetos e emissões de longo prazo, de até dez anos, Serhan, da JiveMauá, pondera que, "se a situação não se resolver, nos próximos anos pode virar problema do credor. "O colchão de reserva de capital das empresas em tese amortiza o curtailment. A companhia acaba postergando a geração de lucro do projeto, mas a solução do problema não é tão óbvia e acho que não é todo o mercado que faz essa análise", diz Serhan.
Ele explica que, como não há mais previsibilidade da demanda como antes, será preciso agora, ao montar as emissões, projetar menos receita no início do projeto e dar mais prazo para o gerador cumprir as obrigações, inclusive considerando uma carência para começar a pagar. "Em operações já feitas, quem não tomou cuidado na avaliação da operação pode ter que sentar com o emissor e rever prazo de pagamento", diz Serhan.
Quando as empresas projetaram esses investimentos não foi considerada essa restrição"- Claudio Alves
Caio Palma, analista de infraestrutura da Sparta, faz a ressalva de que nas emissões vistas este ano predominaram os projetos que fecharam contratos para venda de energia no mercado livre em 2020 e 2021, e, diante da alta dos juros e do próprio desempenho das usinas, captaram um valor menor do que gostariam. Novas plantas, acrescenta, não encontraram o mercado de capitais favorável neste ano e levantaram capital apenas com o BNDES e o Banco do Nordeste, por exemplo. "E, agora, será muito difícil que novos projetos saiam do papel." Segundo ele, a gestora vem ajustando sua modelagem de alocações ao curtailment, mas não reduziu a exposição ao setor elétrico.
Claudio Alves, diretor-presidente da comercializadora de energia Electra, confirma que diversos projetos de novas usinas e emissões de debêntures incentivadas estão sendo adiados nos últimos meses. Ele explica que o curtailment vem crescendo porque a expansão da geração solar foi muito mais rápida do que se imaginava e, no período de maior produção e disponibilidade de sol, ou seja, durante o dia, não tem como escoar o que é gerado. Ao mesmo tempo em que a demanda nesse horário cai, a malha não foi projetada para absorver todo o potencial e ainda não há tecnologia pronta e disponível para armazenamento de energia solar e eólica, via baterias.
Os cortes seletivos sem ressarcimento às usinas se intensificaram fortemente a partir de 15 de agosto de 2023, depois do blecaute que afetou 25 Estados e o Distrito Federal. Segundo o ONS, o apagão aconteceu por conta do desligamento de uma linha de transmissão no Ceará, que desencadeou o apagão, após uma falha no desempenho de equipamentos de parques eólicos e solares. O órgão afirma que os equipamentos responsáveis pelo controle de tensão funcionaram abaixo do ideal. Para evitar nova desestabilização do sistema, o ONS passou a ser mais conservador e ampliou o curtailment.
Os cortes nas usinas eólicas, cujo fornecimento de energia é mais instável, começaram antes das solares e somam o equivalente a R$ 1,2 bilhão entre janeiro e setembro deste ano, frente a perdas R$ 108 milhões no mesmo período do ano passado, segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). Somente em outubro foram R$ 237 milhões. Há casos de usinas eólicas e solares com cortes de 60%, ou seja, que estão recebendo somente este percentual da receita esperada.
O Brasil está desperdiçando energia mais barata e limpa e usando geração mais cara"- Carlos Dornellas
"A produção solar massiva está no Nordeste", explica Alves, da Electra. "Quando as empresas projetaram esses investimentos não foi considerada essa restrição. Toda a energia produzida seria vendida, mas a receita vem sendo impactada pelo curtailment." De acordo com ele, o alerta subiu nos últimos seis meses. "O ideal seria usar energia solar de dia e hídrica à noite, já que a energia das hidrelétricas pode ser armazenada, mas restrições regionais impedem esse equilíbrio."
O caminho mais estável e seguro, comenta, seria acelerar a construção das linhas de transmissão, que são licitadas todos os anos mas exigem em média cinco anos para ficar prontas, enquanto uma usina solar começa a operar em até dois anos. "Os leilões de linhas dos últimos anos vão ajudar a diminuir os cortes mas o impacto será mais relevante a partir de 2026", diz Francisco Silva, diretor regulatório da ABEEólica. Ele ressalta que, mesmo que no ano que vem os cortes diminuam, novos projetos já estarão prejudicados porque os bancos e o mercado de capitais já veem risco maior, o que encarece o financiamento.
"As grandes empresas já estão se movimentando e acho que deve haver uma mitigação do problema em breve", prevê Esteca, da Bocaina. Já em relação ao armazenamento, está previsto para 2025 um leilão de baterias. A compra vai ser centralizada para todas as usinas e os equipamentos, instalados em pontos centrais. "De manhã temos muita oferta e pouca demanda. No fim do dia, quando o sol se põe e acontece o pico do sistema, a energia desperdiçada da manhã poderia ser usada", lamenta Silva.
Dados do ONS mostram que, neste ano, as usinas de fontes alternativas vão injetar R$ 36 bilhões em investimentos com recursos próprios e do mercado financeiro e de capitais e adicionar 2,1 gigawatts médios, para um consumo no país de 80 gigawatts médios. No total, em eólica são 33 gigawatts em capacidade instalada, com previsão de até 2030 agregar mais 20, mas muitos projetos podem ser cancelados. Em solar, são 32,5 gigawatts. No total, o país tem 230 gigawatts de capacidade instalada.
"Precisa modernizar o planejamento e acelerar investimentos, adequar às novas tecnologias. O Brasil está desperdiçando energia mais barata e limpa e usando geração mais cara e poluente das termelétricas", diz Carlos Dornellas, diretor técnico-regulatório da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABsolar).
Valor
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